[O] discurso científico da modernidade nasceu como um discurso contradogmático,
na medida em que ele pôs em questão todos os argumentos fundados na autoridade
do falante ou da tradição. Contra a descrição tradicional do mundo, os
primeiros cientistas propuseram uma nova imagem para o mundo, que não mais se
submetia à autoridade tradicional.
A batalha paradigmática dessa luta foi a travada entre
Galileu e a Igreja Católica, quando Galileu não foi condenado por causa da
veracidade de suas proposições sobre o mundo, mas pela subversividade da
inversão epistemológica que ele propunha com relação à própria teologia. No confronto
entre a interpretação científica e a interpretação teológica, Galileu propôs
que as provas empíricas fossem usadas como justificativa para que a Bíblia
fosse interpretada de maneira alegórica, com relação ao ponto em que um profeta
mandou que o sol parasse o seu curso em torno da terra. Como os sábios bíblicos
já haviam assentado que não se tratava de uma simples alegoria, a sugestão de
Galileu soava herética, pois a demonstração científica não pode valer mais que
a autoridade das palavras bíblicas.
E reverberações dessa mesma luta até hoje são sentidas na
oposição contemporânea dos criacionistas
contra as idéias evolucionistas inspiradas
em Darwin. Em ambos os casos, não se trata propriamente de um debate acerca da Verdade,
mas acerca da Autoridade de certos pressupostos dogmáticos. E nem a Ciência nem
a Religião parecem dispostas a abrir mão do seu espaço de discursos
privilegiados sobre o mundo.
De um lado ou de outro, o que se apresenta não é uma
tentativa de harmonização, mas uma pretensão de hegemonia.
Essa busca de hegemonia, essa presença concreta do poder dentro do discurso
do saber, ela aponta para uma curiosa afinidade: tanto o discurso dogmático
quanto o científico, não podem falar de si mesmos, pois eles não podem
tematizar os próprios pressupostos. Mas a linguagem aqui é enganadora: um olhar externo enxerga
na base desses discursos uma série de pressupostos
implícitos e explícitos. Porém, onde o
olhar externo enxerga pressupostos, o olhar interno enxerga as verdades evidentes da
ciência e valores inquestionáveis da tradição.
Mas o que é a evidência
racional, senão a afirmação de uma inquestionabilidade?
Essas verdades evidentes, justamente por serem evidentes, dispensam qualquer
justificação. Afinal de contas, a evidência
é sempre o critério último da verdade
científica, aquele ponto além do qual a racionalidade não pode ir. Assim, a
inquestionabilidade é o critério último de toda dogmática, assim como de toda
ciência, pois ambos são discursos lineares fundados da inquestionabilidade dos
pontos de partida.
Para além da evidência e da fé, somente há o silêncio, na
medida em que ela não pode ser justificada argumentativamente, mas apenas afirmada.
Dessa maneira, tanto a ciência quanto a dogmática se constituem a partir de um silêncio acerca de suas próprias
bases, e esse silêncio tem a forma de uma afirmação pela inquestionabilidade.
Tais discursos, portanto, constituem olhares voltados para o mundo, mas nunca
para si mesmos, e assim permaneceram durante muitos séculos.
Fonte: COSTA, Alexandre Araújo. Direito e Método: diálogos entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica jurídica [Tese de doutorado]. Brasília: Universidade de Brasília – UnB; 2008. pp. 46/47
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